Começo já dizendo que essas palavras não serão suficientes. Nem essas, nem nenhuma das que eu conheça. Talvez ainda se invente. E que essas poucas sejam sentidas como se fossem muitas mais, infinitas.
Me sinto limitada, pois não sei como transcrever em palavras um sentimento.
Talvez esse abismo perdure para sempre, pois como já bem me disse o querido Rilke, “as coisas estão longe de serem tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer, a maior parte dos acontecimentos acontece num lugar em que nenhuma palavra jamais pisou.”
Eu tinha medo às vezes, medo de riscar o papel, medo de falar o que penso. Medo de perguntar perguntas bobas, medo de não ser simpática a alguém. Mas isso foi antes. Antes de me sentir sufocar dentro da máscara.
É incrível como uma coisa pequena como essa mexeu tanto comigo. Eu me senti renascer. Eu renasci dentro de uma máscara de gesso, daquelas comuns mesmo, que tantas crianças fazem na escola. Experiência que talvez pareça ínfima, mas que me marcou para sempre. Nem que seja na descoberta de uma possível claustrofobia. Acho incrível a relação eterna e mutante do por fora no por dentro e do por dentro no por fora.
Quando o gesso foi colocado no meu rosto eu já sabia quanto tempo duraria e como seria o desenrolar do processo. Teoricamente. Fisicamente.
A sensação era até agradável, era gelado, e escorria nas minhas feições. E eu pensava no quanto incrível seria me ver marcada na máscara. Como seria eu. Outra eu, material, não só a virtual do espelho, que me olha quando a olho, que não hesita quando a olho nos olhos. Me tocar o rosto meu. E pensava também na obra final, eu entre tantos outros, gentes, individualidades reunidas. Quanto cabe num olhar?
A única coisa que me seria permitida além de respirar, era pensar. Direito inalienável. Meus olhos não olhariam, meus lábios não se pronunciariam, as possíveis expressões de um rosto, já não se expressariam. Imobilidade.
Mas uma coisa é saber empiricamente que não terá escolha, e outra, muito diferente, é não ter. Quando todo o meu rosto estava coberto, tentei digerir a idéia. Dirigir as idéias. Não posso me mover. Não posso me mover. Não posso me mover. Não posso abrir os olhos. Não posso abrir os olhos. Não posso abrir os olhos? Essa foi a pior parte.
Ao contrário do gesso que endurecia, minha cabeça parecia um rio por dentro, e um dos mais caudalosos. Quanto mais pensava que tinha de me controlar, menos controlada me sentia. Uma sensação de desespero desesperadora, como de morte, como de falta de ar, como de falta de chão; perdi a noção de espaço e de tempo, por mais que soubesse que o lugar onde estava era grande e aberto, por mais que me convencesse que haviam passado somente minutos. Parecia escuro, pequeno e apertado naquela eternidade. Contei até cem até perder a conta. Segurei a mão de quem chegou perto, mesmo sem saber quem era. Tentava de qualquer modo manter contato com o mundo real.
E tudo que eu tinha naquele momento eram lembranças. Lembranças do que havia vivido até então. Minhas analogias, sentidos, sentimentos, pensamentos... lembranças.
Sem a visão, o paladar ou o olfato, minha audição e o tato se aguçavam. Ouvia a tudo e todos, reconhecendo mínimos detalhes, tentando me situar. E o tato me fazia sentir mais presa e aflita, sentindo o endurecimento da máscara. E o gesso começou a esquentar. E meu coração acelerava, e acelerava também minha respiração. E eu tentando manter a calma, comecei a me imaginar um feto, no útero protegido de uma mãe.
Mas eu ainda não podia abrir os olhos.
Ah, os olhos!
Como me faziam falta!
Talvez o fato de não poder abri-los me incomodasse mais do que a abertura em si.
Impotência.
Prisão.
Enquanto isso certas questões se incutiam em meio ao caos. Ouvi alguém perguntar quem era por baixo da máscara.
Quem era?
Só por ter o rosto coberto não seria eu reconhecida?
E minhas idéias e pensamentos?
Não seriam levados em conta? Não importariam?
Não ajudariam a definir quem era?
Mas como me comunicar? Como expor opiniões por baixo de uma máscara?
Foi quando pedi papel e caneta, através de gestos. Papel e caneta. Um gesto simples, impulsivo. Que mais tarde percebi bastante significativo. Descobri a escrita como indispensável ao meu viver. E é através dela que tento alguma ponte entre mundos. Tão importantes quanto comer ou dormir, para mim.
Quando a máscara pode ser finalmente retirada, vi, mesmo com os olhos ainda fechados, duas grandes bolas de luz amarela. A claridade do dia me inundando os olhos, os enchendo d’água. Foi como renascer. Ainda assim não conseguia me mexer. Os olhos ainda fechados, desta vez por opção. E isso era o que mais importava. Imóvel e incrédula da transformação que havia acontecido em mim, fui olhando a tudo como se fosse a primeira vez, percebendo texturas, cores. Mas ainda com um ar de reencontro. Foi um mergulho fundo. Tão fundo que não se se consigo voltar à superfície.
Indizível foi, indizível é.
Mas aqui jaz um conselho aos que se chamam humanos: se quiserem se auto-descobrir, desfaçam-se das máscaras.
2 comentários:
Linda tua experiência sobre como máscaras são ferramentas para improvisação de teatro, diferentemente o que acontece na vida real.
Aqui vale a pena apenas quando damos a cara a tapa.
oi, vim conhecer seu blog.
adorei seus assuntos, parabens..
bjo ate logo.. :)
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